BOA VISTA, RR (FOLHAPRESS) - "Chiquinho, Chiquinho, Chiquinho", gritava a torcida do GAS (Grêmio Atlético Sampaio) ao final do jogo no estádio Canarinho, em Boa Vista, apesar da derrota do time da casa por 2 a 1 para o Manaus, no último sábado (24), pela Série D do Brasileiro.
Mais surpreendente que ver uma torcida gritar o nome do seu técnico mesmo na derrota é saber a origem dele: Chiquinho é na verdade treinador do São Raimundo, rival do GAS no futebol roraimense. Os times se enfrentaram na decisão do estadual do ano ado, com o GAS vencendo por 3 a 2.
Acontece que o GAS -único representante de Roraima, estado do novo presidente da CBF, Samir Xaud, em qualquer categoria do principal campeonato nacional- está mal das pernas na quarta e última divisão: após seis rodadas, é o penúltimo do Grupo A1.
O clube então pediu ajuda ao adversário São Raimundo, que está de recesso, sem disputar nenhum torneio.
"O presidente do GAS me telefonou logo após um jogo deles lá no Acre [derrota por 4 a 1 para o Independência] perguntando se eu liberava o Chiquinho. Falei com o Chiquinho e, por não estar trabalhando agora, ele achou bom.
Justamente pra tentar erguer o GAS nessa competição para ranquear mais a federação, entendeu?", contou Sérgio Caranguejo, presidente do São Raimundo.
Se o GAS fracassar no torneio, Roraima pode cair no Ranking das Federações da CBF (é o 24º entre 27) e perder a única vaga na Série D; se for bem, o estado pode até alcançar uma segunda vaga, sonho de todos os dez clubes federados. Daí o empréstimo de Chiquinho.
"Foi um acordo entre as duas diretorias, para unir forças. Uma parceria para brigar não só pelo GAS, mas pelo futebol de Roraima. Fico muito feliz que minha ideia tenha sido aceita pelo Sérgio Caranguejo e outros diretores do São Raimundo", festeja o presidente do GAS, Jander Cavalcante.
É como se, guardadas as proporções, num recesso qualquer do Palmeiras, o clube emprestasse Abel Ferreira ao Corinthians ou ao São Paulo para que o adversário tentasse melhorar num torneio -e, ao final dele, Abel voltasse normalmente ao Palestra Itália. Porque faz parte do acordo que, ao final da Série D, Chiquinho volte para o seu clube de sempre, o São Raimundo.
Se por um lado o empréstimo soa exótico, é preciso dizer também que o emprestado justifica a aventura. Chiquinho não é um técnico qualquer. É uma lenda no futebol roraimense e, por que não dizer, uma avis rara no futebol nacional. Está há 14 anos ininterruptos liderando o Mundão, como o São Raimundo é chamado pelos torcedores.
É provavelmente o técnico mais longevo do futebol brasileiro -donde se constata que, apesar do desempenho acanhado em campo, Roraima acumula superlativos fora dele, uma vez que Zeca Xaud, pai de Samir e presidente da federação local, com quase 50 anos de cartolagem, é o dirigente há mais tempo oficialmente à frente de uma entidade do tipo no país.
Depois do empréstimo, Chiquinho voltará porque essa é o desejo/exigência da maior autoridade do clube. "Ele só vai deixar de treinar o São Raimundo se um dia eu sair. Enquanto eu for presidente ele será o treinador", promete Sérgio Caranguejo, que também é policial civil e assumiu o comando em 2011. Antes, foi técnico da equipe, e teve Chiquinho como jogador.
Num sintoma das dificuldades do futebol local, o São Raimundo, embora o maior campeão estadual (12 títulos), costuma ficar meses sem jogar. Só deve voltar a campo agora em 2026, pelo Roraimense.
Na primeira partida sob o comando de Chiquinho, o GAS conseguiu sua primeira vitória, 4 a 1 sobre o Humaitá, do Acre. Na segunda, apesar da derrota para o Manaus, jogou melhor no primeiro tempo e agradou a torcida, a ponto de ser festejado mesmo na derrota. E como o técnico se sentiu ao ouvir seu nome gritado pela torcida ex-futura rival, que por ora é a sua?
"É bom, porque eles conseguiram ver o que a gente pensa, da intensidade que a gente quer no futebol", responde Chiquinho, 56, depois de uma gargalhada. "Mas eu preciso de um pouco mais de tempo para esses atletas fazerem o que eu quero, da forma que eu penso: muita intensidade quando a gente estiver com a bola. Sempre, sempre. Eu não abro mão disso."
Foi com esse estilo que, no São Raimundo, Chiquinho alcançou feitos notáveis recentemente, como bater o Cuiabá (então na Série A) pela Copa do Brasil 2023 e, neste ano, superar o Remo na Copa Verde e quase eliminar o Grêmio pela Copa do Brasil (1 a 1 no tempo normal, com os gaúchos vencendo nos pênaltis).
"Se enfrentamos equipes financeiramente e tecnicamente superiores, temos que causar desconforto. O que é o desconforto? Fazer com que eles corram pra trás, que eles tenham dificuldades", receita Chiquinho. "Eles vão sempre ser favoritos. A partir do momento em que a gente coloca pra correr pra trás, coloca intensidade, a gente causa desconforto. E aí as vitórias vão vir."